Cavalo Caramelo e quando a água baixar
Marco Antonio Spinelli*
O final de Abril e o começo de Maio foram marcados pelo pior desastre
ecológico da história do Rio Grande do Sul, com inundações, mortes e
milhares de desabrigados e de pessoas ilhadas. Nosso país assistiu
atônito, preso em mais uma onda de calor, com a umidade encapsulada e
derramando toda a chuva no sul do país. Calor e secura aqui e um
dilúvio ali. Negacionistas teclam furiosos que não foi tão ruim
assim. Depois de chamar a Covid 19 de “uma gripezinha”, o que vai ser
agora? Foi só uma chuva de verão?
Nossos olhos perplexos fitam as imagens de perda, os resgates
improvisados, as pessoas subindo nos caminhões com filhos, gatos e
cachorros no colo. Vi uma imagem numa Rede Social de um senhor se
agarrando em seus cachorros resgatados, que tinham ficado para trás.
Ele, aos prantos, eu, com os olhos gotejando. E a imagem de um cavalo
ilhado, imóvel, encima de um telhado percorreu o mundo, ficou doendo
nas telas. Alguns dias parado, imóvel, encima de um espaço exíguo.
Essa imagem mobilizou influencers e internautas para ver o que fazer
para tirar o “Caramelo”, assim nomeado pelas redes, daquela situação.
Uma equipe de veterinários e bombeiros foram em vários botes para
salvar Caramelo. Ele foi sedado lá no telhado mesmo, apesar do risco do
mesmo ceder, não cedeu, e o bicho foi colocado como um bebê no bote
que finalmente o tirou dali, depois de quatro dias e meio de
resistência. Lágrimas, aplausos. E alívio. Que alívio!
Assisti uma aula de um Psiquiatra indiano, Dr Suresh Bada Math, em que
ele dividiu a resposta das pessoas, em situação de Desastre Natural,
em quatro fases: Fases Heróica, Lua de Mel, Desilusão e Recuperação.
Na fase inicial, ligamos em nosso Cérebro o modo de sobrevivência. É
uma fase que o objetivo é reduzir ao máximo os danos e salvar vidas.
Bombeiros e militares se revezam para resgatar as pessoas, tratar os
feridos, impedir a propagação de infecções. Voluntários aparecem de
todos os lugares. Depois vem a fase que ele estranhamente referiu como
“Lua de Mel”, o que eu acho que é para causar essa estranheza mesmo:
chegam donativos de todo o país, remadores olímpicos e surfistas vão
resgatar as pessoas, autoridades prometem mundos e fundos, abrigos,
roupas, auxílio médico, tudo brota como mágica. Estamos vendo essa
fase agora. Isso é bom? Isso é ótimo. Salvou o Caramelo da morte por
fadiga muscular e desidratação. Mas, para a Psiquiatria, tem um
porém, quando as águas baixarem. Aí é que vem a fase da queda no
Real. E a desilusão.
Quando passamos por uma perda, por exemplo, de um ente querido, na fase
inicial, a Heróica, parece que somos inundados por Adrenalina, para
cuidar de todos os detalhes, proteger os mais vulneráveis, consolar o
sofrimento. Nas primeiras semanas após a perda, vem as ligações, as
visitas, o amparo de amigos, parentes, colegas do dia a dia, para
animar, estimular e acolher a pessoa que passa por aquela perda. Mas o
tempo passa, e a água, abaixa. E aí que começamos a dimensionar o
tamanho do estrago. As pessoas retomam suas vidas. Os telefonemas
escasseiam. Nessa hora, em que parece que a vida vai continuar, é aí
que um psiquiatra vai colocar seus olhos e ouvidos atentos: é a fase da
grande tristeza. A fase em que “cai a ficha”. E o que aparece?
Revivências dos traumas, revolta, angústia, uma imensa sensação de
perda e vazio, o que pode desembocar em vários transtornos
psiquiátricos. E, veja só, é nessa hora, quando a poeira e a água do
Guaíba baixar, que a mídia vai embora, os blogueiros vão falar de
outra coisa e as pessoas vão ver o que sobrou depois do dilúvio. Nessa
fase de desalento, estranhamente, costuma ser a fase em que há a maior
solidão e confronto com a dor. Acaba o oba-oba da mídia e começa o
trabalho de enxada da reconstrução, onde não pode faltar a escuta, o
apoio, os planos de reconstrução: isso vai ser tarefa também da
equipe de Saúde Mental. Esse é o paradoxo: quando a água refluir, a
comoção da opinião pública se abrandar, nessa hora que os enlutados,
os órfãos e os caramelos vão precisar de mais ajuda. De mais
investimento.
Uma lembrança para os queridos leitores, aí do outro lado da tela:
isso vale para todo processo de luto: quando todo mundo acha que ele
está melhorando, é justamente aí que a tristeza fica pior. E precisa
ser acolhida. Por todos.
*Marco Antonio Spinelli é médico, com mestrado em psiquiatria pela
Universidade São Paulo, psicoterapeuta de orientação junguiana e
autor do livro “Stress o coelho de Alice tem sempre muita pressa”