Uso de remédios de maneira diferente daquela descrita em bula aprovada pela agência regulatória – qual a responsabilidade do médico?
Medicamentos desenvolvidos para determinadas enfermidades e utilizados no tratamento de outras doenças
A responsabilidade civil dos médicos e empresas farmacêuticas pela prescrição de medicamentos off-label ( uso de medicamentos de maneira diferente daquela descrita em bula aprovada pela agência regulatória) é um tema complexo e relevante no campo da saúde. A prescrição off-label ocorre quando um medicamento é utilizado de uma maneira não aprovada pelas autoridades regulatórias, seja por indicação de dose, via de administração, faixa etária ou condição clínica diferente daquelas para as quais o medicamento foi originalmente aprovado.
A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) define o uso off-label como o de medicamento, material ou qualquer outra espécie de tecnologia em saúde, para indicação que não está descrita na bula ou manual registrado na ANVISA ou disponibilizado pelo fabricante (artigo 4º, X, da RN 465/2021).
A própria ANS, na mesma RN 465/2021, permite às operadoras de planos de saúde suplementar excluir do âmbito da cobertura contratual os tratamentos off-label, com exceção aos casos nos quais houver aprovação de sua disponibilização no Sistema Único de Saúde (SUS), nos moldes definidos no disposto no inciso I do parágrafo único do art. 19-T da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, incluído pela Lei nº 14.313, de 21 de março de 2022, e dos §§ 6 e 7º do art. 15 do Decreto nº 7.646, de 21 de dezembro de 2011, incluído pelo Decreto nº 11.161, de 4 de agosto de 2022.
Mesmo assim, o Poder Judiciário tem entendido pela obrigatoriedade da cobertura, sob o argumento de que a negativa, em tais casos, seria abusiva porque caberia exclusivamente ao médico assistente e não à operadora a definição do tratamento mais adequado, ainda que experimental ou off-label (exemplo recente: AgInt no AREsp 2166381/STJ).
Com isso, verifica-se que os médicos acabam desempenhando um papel crucial na prescrição de tratamentos off-label, pois têm a autoridade – referendada pelo próprio Poder Judiciário – de decidir quais são apropriados para os seus pacientes. Nesse ponto, é que surge a responsabilidade, cuja modalidade aqui tratada é a civil.
A responsabilidade civil dos médicos, pela prescrição off-label – que ficou ainda mais evidenciada por tal prática para o tratamento de COVID-19, pode surgir, em situações em que o paciente venha a sofrer danos, como resultado do uso do medicamento fora das indicações aprovadas. Isso pode incluir reações adversas graves, agravamento da condição médica, efeitos colaterais imprevistos ou, até mesmo, a falta de eficácia do tratamento.
Comprovando-se a prescrição médica sem evidências científicas sólidas que sustentem a sua eficácia, o dano causado ao paciente e o nexo de causalidade entre a prescrição e o dano, estará configurada a situação de imprudência, negligência ou imperícia a demonstrar ato ilícito indenizável e, portanto, responsabilização civil.
Por isso, é de suma importância que os médicos baseiem-se em evidências científicas robustas que sustentem a eficácia e a segurança do uso off-label, bem como a obtenção do consentimento informado do paciente.
Ana Paula Oriola de Raeffray – advogada, sócia do escritório Raeffray Brugioni. Doutora em Direito pela PUC-SP. Vice-presidente do Instituto de Previdência Complementar e Saúde Suplementar – IPCOM. Membro e Diretora Científica da Academia Brasileira de Direito da Seguridade Social. Membro Titular da Câmara de Recursos da Previdência Complementar – CRPC.
Franco Mauro Russo Brugioni – advogado, sócio do escritório Raeffray Brugioni. MBA em Gestão e Business Law pela Fundação Getúlio Vargas – FGV. Relator Vice-Presidente da Terceira Turma Disciplinar do Tribunal de Ética Disciplinar da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo.