Contar piada é crime?

A condenação do humorista Léo Lins, a mais de oito anos de prisão em regime inicial fechado, com base na Lei de Racismo, trouxe à tona um debate que parece velho, mas que se reinventa a cada caso concreto: até onde vai a liberdade de expressão constitucionalmente garantida e em que ponto ela colide com os limites da dignidade humana? As falas proferidas por Lins em seu show de comédia chamado “Perturbador” abordaram temas sensíveis, com foco em piadas para grupos que sofrem preconceito e discriminação rotineiramente, fato que ensejou – pela Justiça Federal de São Paulo – o enquadramento nos crimes previstos na Lei nº 7.716/89 (Lei de Racismo): praticar discriminação ou preconceito (art. 20), por intermédio de publicação em redes sociais (art. 20, § 2º), ainda que com o intuito de recreação ou de diversão (art. 20-A).

Do ponto de vista jurídico, o cerne da controvérsia gira em torno da vontade do agente (juridicamente definida como dolo): Leo Lins, ao contar piadas ofensivas, agiu com o dolo de discriminar, ou “apenas” de brincar com pessoas, que inclusive pagaram para estar em seu show?

Mas não é só: a diferença entre uma piada de gosto duvidoso e um discurso criminoso, muitas vezes, repousa sobre uma linha tênue e escorregadia, tendo em vista o crescente entendimento de que o impacto social da fala — seus efeitos práticos sobre a coletividade — deve pesar mais que a justificativa individual de quem fala. E quando esse impacto reforça estigmas, marginaliza grupos ou legitima discursos de exclusão, a responsabilização penal entra em cena.

A verdade é que não estamos lidando com respostas simples. A atualização da Lei de Racismo, no ano de 2023, ampliou significativamente o alcance da norma penal, ao prever que, mesmo quando o preconceito se manifesta em ambiente de diversão ou de descontração haverá crime, com a pena aumentada: é o que se convencionou chamar de “racismo recreativo” (art. 20-A). Esta nova forma de racismo escancara um problema cultural flagrante em nosso país, especialmente quando normaliza-se a dor do outro quando ela vem disfarçada de riso. Ainda assim, vale lembrar — e sublinhar — que o direito penal exige mais do que reprovação social ou indignação pública, sob pena de, ao punir o humor, acabar ferindo a própria liberdade que busca proteger.

Por isso, talvez o mais honesto — e juridicamente seguro — seja reconhecer que se trata de um caso limítrofe; um daqueles que revelam as fissuras entre princípios constitucionais igualmente relevantes, já que a liberdade de expressão não pode ser carta branca para discursos de ódio, mas tampouco pode ser sufocada por interpretações penais maximalistas. Nesse equilíbrio delicado, caberá a nossos Tribunais Superiores dar a última palavra e estabelecer se o humor, mesmo ácido, ainda encontra abrigo sob o manto da liberdade criativa; ou se, diante dos novos contornos legais, deve configurar crime, com a consequente responsabilização do humorista.

O que está em jogo não é apenas o destino processual de um comediante, mas o rumo que daremos, enquanto sociedade, à convivência entre liberdade e respeito. Decidir onde termina a piada e começa o crime será tarefa árdua, pois a teoria é relativamente simples desde o tempo do povo romano: virtus in medio (a virtude está no meio). A prática, contudo, são outros quinhentos.

 

Antonelli Antonio Moreira Baracat Secanho

Advogado, professor de Direito Penal da UniFAJ e UniMAX, Vice-Presidente da Comissão da Academia do Direito e membro da Comissão de Direito Criminal da 232ª Subseção da OAB/SP – Jaguariúna e Santo Antônio de Posse.